terça-feira, 20 de julho de 2010

Lobo temporal medial

Um banco, um vaso e uma árvore precisando ser podada. A rua movimentada com carros, buzinas, ambulantes e crianças brincando, em uma calçada não muito longe dali tinha um velho. Um velho de barba branca, olhos azuis bem fundos, cabelo ralo. Ele era um velho danificado pelo tempo olhando a rua movimentada. O velho era calado, e foi se calando ainda mais com o tempo, suas histórias de guerras não eram mais legais, ele vivia sozinho e nem sabia por que vivia se a única coisa que fazia era ver a rua movimentada distraindo-o nos momentos finais.

Não tinha com quem compartilhar as memórias que de tão velhas não sabia estabelecer quais eram reais e quais faziam parte da imaginação, lembrava-se que a infância tinha cheiro de barro e casca de árvore, que as cores da infância permaneciam frescas e vivas em sua memória, tinha tido irmãos e apesar das dificuldades financeiras enfrentadas pelos pais em seu coração sentia um frio de felicidade, de querer crescer e ter expectativas.

Depois se lembrou da juventude, modéstia a parte ele sabia que tinha sido muito bem apessoado e encantador com as moças, saia todas as noites (era um boêmio nato) dentre as mulheres que conheceu Barbara era a que mais se assemelhava a ele, não que ele tenha se apaixonado por ela (paixão é um assunto mais adiante), mas porque ambos queriam desbravar o mundo e fazer justiça aos necessitados e todas as coisas da moda rebelde da época, Barbara sumiu, sem deixar vestígios, depois de um tempo ele soube que ela morrera em um confronto com policiais no Chile.

Após a fase rebelde, foi em uma viagem com uns amigos até o Guarujá que ele conheceu Elisa, uma bailarina daquelas que dá pra perceber a metros de distância que é uma dançarina das melhores, tinha um corpo com algumas curvas amenas que o encantava, o rosto cumprido que ele não cansava de pensar em uma pintura mais pura, e um olhar que de tão firme tirava os medos de qualquer um. Não foi difícil se apaixonar por Elisa, ele não conseguia entender como uma moça tão formosa não tinha namorado, de qualquer maneira isso era muito bom pra ele. E foi romântico como nos filmes, um luar de lua cheia, o mar, a areia, o vento fresco sob os cabelos de Elisa, seu namoro começou naquela hora às 21.45 do dia 15 de março, jamais esquecera essa data, isso ele tinha certeza que era uma memória real.

Em dois anos já estava casado com Elisa, e depois de um ano disso nasceu seu primeiro filho Guilherme, o nascimento de Guilherme era um misto de alegria e lágrimas, pois Elisa não agüentou o parto e morreu quando Guilherme nasceu. A dor foi das mais insuportáveis da vida, nessa altura da existência é bem mais fácil fazer um balanço dos sentimentos e colocar categorias neles, e a morte de Elisa com certeza foi um sentimento doloroso e que ele não queria ter passado nunca. A casa nunca foi cheia de crianças e parentes, tudo tinha um ar triste com um gosto nostálgico do passado. Não demorou muito pra Guilherme sair dali e ir para a faculdade, tudo aconteceu muito rápido e ele sabia no momento em que o filho saiu dali que ele não voltaria tão cedo, e isso se consumou, hoje em dia Guilherme é casado mora em outro estado e quase nunca visita o pai, apesar disso ele entendia melhor que ninguém que a juventude nos dá compromissos e diminui nosso tempo.

O velho resolve sair da rua, pois já anoitecera, entrando em casa os objetos, os retratos, os móveis, o silêncio... Resolve retomar a memória e continuar lembrando, afinal é melhor que ligar a TV.